São Paulo – No início deste ano, a Ambev, gigante produtora de bebidas e conhecida por ser uma empresa focada em resultados, lançou um produto diferente: a água AMA, cujos lucros são todos investidos em projetos que garantem o acesso à água no semiárido.
A ideia pode parecer só jogada de marketing à primeira vista, mas acreditem, é séria – trata-se de um negócio social e foi desenvolvida com a ajuda de uma das pessoas que mais entendem do assunto no Brasil, o empreendedor Rogério Oliveira.
Fundador da Yunus Negócios Sociais Brasil, Oliveira tem o privilégio de carregar em sua empresa o nome do prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus, economista e banqueiro bengali. A Yunus Brasil é um braço da organização mundial fundada por ele, e que hoje está presente em sete países.
Desde o ano passado, a Yunus Brasil oferece um programa de aceleração para grandes empresas interessadas em ter um negócio social para chamar de seu. Isso significa ter um negócio lucrativo e sustentável economicamente, mas que não gera dividendos – todo o lucro de um negócio social é investido nele próprio, com o intuito de solucionar um problema social.
Para Oliveira, não é apenas filantropia: é a evolução do capitalismo. “Os negócios sociais são uma evolução do capitalismo tradicional. A gente ainda depende de investidores doadores para começar essa indústria, mas daqui dez anos grandes negócios sociais lucrativos vão ser os investidores dos próximos negócios sociais”, afirma.
O empreendedor, que antes de fundar a Yunus passou 20 anos no mercado corporativo, falou ao site EXAME sobre o início do seu negócio, o trabalho que desenvolve com empreendedores e grandes empresas, e sobre como vê o futuro dos negócios sociais.
Veja os principais trechos da entrevista a seguir:
O que a Yunus Brasil faz?
A gente ajuda a construir negócios sociais no Brasil. Temos duas formas principais de fazer isso: uma é através de indivíduos, portanto, empreendedores. Para esse público a gente tem uma aceleradora e um fundo de investimento. A segunda é focada em empresas. A gente percebeu esse potencial de grandes corporações começarem a criar um side business com o seu próprio negócio social, a partir do core business da empresa, o que modifica muito a lógica tradicional de responsabilidade social.
Qual o problema com a lógica tradicional de responsabilidade social?
As ações de responsabilidade social são legais, mas são sempre uma coisa muito paralela à empresa, um apêndice muito pequeno. Elas não erradicam problema. E a gente está atrás de erradicar problemas. Para isso você precisa de soluções mais complexas e também mais poderosas no sentido de serem escaláveis e auto-financiadas. O negócio social é bacana porque mexe com a operação principal da empresa.
Como esse trabalho com grandes corporações se traduz na prática?
A gente criou uma aceleradora no ano passado só para grandes corporações, com um programa que dura sete meses. Esse ano a gente tem Johnson & Johnson, Natura, Caixa Econômica, Nestlé. No primeiro ano foi Ambev, Randstad e algumas outras. E já existe um negócio social que foi criado a partir do nosso programa com a Ambev, que é a água AMA. Temos mais um que deve ser lançado logo com a Randstad, uma empresa holandesa de recursos humanos. Estamos muito felizes porque, quando você tem uma grande corporação escolhendo fazer isso, é algo que ajuda a dar visibilidade para essa história dos negócios sociais.
A gente tem sido chamado por grandes empresas para rediscutir a estratégia de investimento social privado. Até então esse investimento era muito no formato tradicional de responsabilidade social, e acho que o negócio social traz uma provocação muito forte. Você está aí todo ano, como corporação, doando dinheiro para programas. Vamos falar de verdade: na prática que impacto você está criando? E quão sustentável é isso? Quão dependente de você a organização é? Você está criando algo que anda com as próprias pernas?
Como nasceu a Yunus Brasil?
A gente nasceu aqui de forma empreendedora. Muita gente tem a imagem de que, porque o Yunus é um grande banqueiro, ele saiu financiando operações no mundo. Mas não é bem assim. A gente nasceu de forma empreendedora, com a grande vantagem de ter o nome e a expertise dele. Eu trabalhei 20 anos no mercado corporativo e saí para criar a minha própria aceleradora de negócios sociais, inspirado pelos livros do Yunus.
Encontrei com ele num congresso na Áustria e nós mantivemos contato. Até que nos encontramos de novo na Rio+20 e ele me perguntou: “Se você usasse o meu nome, isso te ajudaria?”. E então fundamos a empresa como parte da Yunus Social Business. Nós acabamos virando um laboratório para a Yunus no mundo. Muito do que nós fazemos com os empreendedores foi exportado para outros países. Esse programa com grandes corporações também não existia , a gente começou aqui e hoje já existe também na Índia.
A Yunus Brasil anda com as próprias pernas?
Meu foco sempre esteve em provar nosso valor aqui como uma empresa normal e, se a gente um dia não conseguir se sustentar, é porque a gente não tem valor, então a gente fecha.
Hoje a gente se sustenta, o ano passado foi o primeiro ano que atingimos o break even. Basicamente a nossa receita vem desse programa com grandes corporações. Essa é a receita principal. A próxima que virá vai ser do nosso fundo de investimento. Até hoje os investimentos que fizemos no Brasil foram através do fundo global [até hoje a Yunus Brasil investiu R$ 1,1 milhão em negócios sociais]. Levou algum tempo para a gente achar os caminhos legais para estruturar um fundo que não dá retorno financeiro.
Agora o fundo já está em boa parte captado, um fundo brasileiro captado aqui. A gente vai entrar em operação no primeiro trimestre, e aí passamos a ter uma taxa de administração que também remunera a Yunus, e paga a equipe que faz todo esse trabalho com os empreendedores, desde a aceleração, investimento e pós-investimento.
Como funciona esse fundo? Os investidores nesse caso não estão interessados no retorno do investimento?
No modelo de investimento do Yunus você retorna o investimento, corrige a inflação, mas não tem retorno financeiro como investidor. E isso não existia na CVM, então foi uma discussão que levou um tempo.
É o que a gente chama de investimento filantrópico. A quantidade de dinheiro de empresas e de pessoas físicas que hoje vai justamente para esses programas de responsabilidade social, doações para ONGs. Só que, se hoje você doa 100 mil reais para uma ONG, no ano que vem tem que doar de novo, senão a ONG não se sustenta. Num negócio social é o que a gente chama de filantropia 2.0. É um dinheiro que na verdade vira um capital semente para o negócio, e no ano seguinte eu não preciso investir de novo, a empresa consegue andar com as próprias pernas.
Então é esse tipo de investidor que nós buscamos, o cara que já tem um bolso separado para não ter retorno financeiro, o que é muito bom. Hoje existem no mercado modelos de investimento de impacto social que prometem retorno financeiro, mas a gente gosta muito desse modelo em que o investidor e o empreendedor estão alinhados e focados em erradicar o problema.
Os negócios sociais seriam então uma evolução das ONGs?
Primeiro eu não generalizo, acho que existem muitos problemas sociais que um negócio social talvez não seja capaz de resolver e aí você precisa do trabalho do Estado ou da ONG, porque talvez não tenha modelo de negócio para resolver aquilo.
Mas esse movimento está fazendo com que muitas ONGs se questionem e busquem formas mais sustentáveis de se manter. Ao mesmo tempo a gente gosta de entender o negócio social não só como uma evolução da ONG. Na verdade também é uma evolução do capitalismo tradicional.
Como assim?
A gente agora ainda depende de investidores doadores para começar essa indústria, mas você imagina daqui a dez anos, grandes negócios sociais lucrativos que vão ser os investidores dos próximos negócios sociais. Existirá uma bolsa de recursos para os negócios sociais. É que a gente ainda está muito no começo e não consegue visualizar isso. Mas quando a gente olha para Bangladesh, onde essa história já tem três décadas, o Grameen Bank [banco de microcrédito fundado por Muhammad Yunus] é um prédio gigantesco. O Grameen Shakti é a maior empresa de energia solar do mundo, tem 11 mil funcionários. São indústrias grandes.
E são empresas que não pagam dividendos para acionistas, por exemplo?
Não pagam dividendos, e são lucrativas, elas conseguem erradicar o problema, e começar a investir em novos negócios. Como aconteceu com a indústria tradicional. Como a indústria tradicional surgiu? Surgiu a partir de dinheiro do Estado. Também houve um primeiro movimento, um fluxo financeiro para fazer o mundo privado existir. Ele também precisou desse primeiro empurrão, que é o empurrão que a gente está recebendo agora.
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